quarta-feira, 4 de março de 2009

Parasitologia - Fascíola Hepática



INTRODUÇÃO
A fasciolose hepática é causada por um trematoda - Fasciola hepatica – que raramente é responsável por doenças em seres humanos, sendo sua infecção acidental. Por outro lado, sabe-se que as zonas de alta prevalência de fasciolose humana não coincidem com aquelas em que tal enfermidade constitui um problema veterinário relevante.
Alguns casos esporádicos têm sido relatados na literatura apontando a fasciolose hepática como determinante de obstrução biliar ocasionando icterícia obstrutiva 1- 5.
A possibilidade de termos tratado uma paciente portadora de fasciolose hepática com obstrução biliar motivou-nos ao presente relato.

RELATO DO CASO
Uma paciente, 53 anos, agricultora, procedente da zona rural do Rio Grande do Sul, procurou o ambulatório de Cirurgia Geral da nossa Instituição com história médica pregressa de colecistectomia por incisão de Kocher há 10 anos, seguida de papilotomia endoscópica três anos após, por suspeita de coledocolitíase (o laudo da colangiopancreatografia trazido pela paciente era dado como vias biliares difusamente dilatadas e cuja exploração não evidenciou presença de cálculos). Presentemente, queixava-se de episódios repetidos de dor no hipocôndrio direito, por vezes associados com náuseas e vômitos, icterícia flutuante, colúria e acolia, bem como astenia e tontura. Negava emagrecimento ou outras queixas. Apresentava-se anictérica e com mucosas hipocorada. A paciente trazia consigo exames laboratoriais que demonstravam anemia persistente (hemoglobina de 7,9g/dL), eosinofilia (7,3%) e provas de função hepática dentro dos limites da normalidade. Negava viagens a outros estados do Brasil ou a outros países.
A ecografia abdominal demonstrava dilatação da via biliar intra e extra-hepática, ducto colédoco com 14 mm, com conteúdo ecogênico no seu interior compatível com cálculos. A tomografia abdominal evidenciou idêntica dilatação da via biliar intra e extra-hepática, bem como redução brusca do calibre hepatocoledociano junto à inserção do ducto cístico, preenchido por bile aparentemente densa. Além disso, nos segmentos hepáticos sete e oito identificava-se uma área de aspecto infiltrativo, contendo calcificação.
Com o diagnóstico de dilatação da via biliar principal e a evidência tomográfica de redução brusca do calibre coledociano, aventamos como hipóteses diagnósticas litíase residual ou primária de colédoco, estenose cicatricial ou ascaridíase. Tendo a paciente já sido submetida a papilotomia endoscópica, optou-se por levá-la à laparotomia por incisão de Kocher. No trans-operatório, a colangiografia evidenciou dilatação das vias biliares, defeitos de enchimento da via biliar principal e ausência de passagem de contraste para o interior do duodeno (Figura 1). À coldecocotomia foi identificada a presença de Fasciola hepatica no seu interior, sendo retiradas 25 unidades deste trematoda por intermédio de coledocoscopia e pinça de preensão (Figura 2). A coledocoscopia evidenciou o epitélio da via biliar com lesões infiltrativas com pontos hemorrágicos. Realizou-se lavagem abundante da via biliar e sua derivação através de hepaticojejunostomia. À palpação, identificamos área infiltrativa no lobo hepático direito, cuja biópsia demonstrou processo inflamatório crônico.






A paciente obteve alta hospitalar no sétimo dia de pós-operatório sem complicações e orientada para tratamento clínico com bitionol. Encontra-se assintomática no sexto mês de pós-operatório.

DISCUSSÃO
Apresentamos um caso de fasciolose hepática autóctone do Rio Grande do Sul, estado não referendado pela literatura como sítio comum desta infecção em humanos. O presente caso mostra-se peculiar pelo diagnóstico diferencial da icterícia flutuante em paciente colecistectomizada submetida a papilotomia endoscópica previamente.
A infecção humana, considerada como acidental e descrita com poucos relatos na literatura1-5, inicia pela ingesta de metacercárias oriundas de ovos presentes em fezes de herbívoros. Quando ingeridas, as metacercárias ativamente atravessam a parede do intestino delgado em direção à cavidade peritoneal, vindo a penetrar a cápsula hepática em poucos dias, caracterizando a fase aguda ou invasiva da infecção. A seguir, a larva atinge sua maturidade e passa a migrar lentamente para o interior das vias biliares, onde exercerá seu papel parasitário (fase crônica, obstrutiva ou biliar). A fase aguda caracteriza-se por febre, dor abdominal, cefaléia, urticária e eosinofilia, estando as provas de função hepática habitualmente normais. No que tange à fase biliar, os sintomas assemelham-se àqueles da coledocolitíase, sendo que os exames de imagem podem espelhar dilatação das vias biliares e defeitos de enchimento, sugestivos de litíase3. Além disso, na fase aguda, a penetração hepática pode transparecer à tomografia como lesões infiltrativas periféricas no parênquima hepático.
No presente caso, paciente oriunda da zona rural do RS com criação de ovinos, não foi possível estabelecer o período da infecção aguda, mas a fase biliar ficou bem documentada com os achados clínicos, laboratoriais, imaginológicos e cirúrgicos, ainda que a lesão hepática descrita na tomografia e vislumbrada à laparotomia pudesse corresponder à cicatriz da fase aguda. Não dispusemos de sorologia para Fascíola hepática neste caso, embora alguns autores tenham descrito sua utilidade para o diagnóstico e para o acompanhamento da doença1- 4. Ademais, o diagnóstico etiológico pode ser mais fortemente sugerido por exame parasitológico de fezes com técnica de sedimentação com surfactante4.
O tratamento da fasciolose hepática tem sido referido como clínico ou invasivo. No que diz respeito ao tratamento clínico, quase em base experimental, baseia-se na utilização de bitionol ou triclabendazol, com relatos promissores de alguns autores, inclusive com regressão das lesões hepáticas2,-5. [Advoga-se o tratamento invasivo para os pacientes portadores de obstrução da via biliar pela Fasciola hepatica, sendo a utilização da colangiopancreatografia retrógrada endoscópica ou extração cirúrgica referidos na literatura] 1, 3, 4. No presente relato, a extração cirúrgica com a disponibilização da coledocoscopia e pinça de preensão demonstrou ser factível sem riscos excessivos de lesão à via biliar.
Um ponto a ser considerado neste caso é que a paciente fora submetida previamente à papilotomia endoscópica. Desta feita, poderíamos conjeturar que as metacercárias, ao invés de atravessarem o intestino delgado e transgredirem o parênquima hepático, pudessem ter (de uma forma alternativa ou complementar) ascendido à via biliar retrogradamente através da papila de Vater que sem seu mecanismo esfincteriano fisiológico. Isto explicaria a ausência de sintomas pronunciados da fase aguda nesta paciente, embora a lesão hepática descrita pudesse corresponder à lesão da fase aguda. Assim, tal hipótese caracterizaria um mecanismo fisiopatológico alternativo para a infecção errática de humanos pela Fasciola hepatica.
Em suma, é rara a infecção de seres humanos pela Fasciola hepatica, sobretudo no Rio Grande do Sul. Tal infecção geralmente cursa com uma fase aguda e outra crônica (biliar), embora o mecanismo fisiopatológico sugerido para este caso pudesse determinar diretamente a fase biliar. Nesta fase, a biliar, o tratamento com derivação bílio-digestiva parece-nos plausível, como no presente caso, em que a paciente encontra-se assintomática seis meses após o tratamento.

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